O corpo que brinca, o mundo que se revela
Nasci a terceira entre três meninas, a caçula que herdou não só roupas e risadas, mas um quintal inteiro de possibilidades. Havia pátio, árvores que convidavam ao alto, pregos e madeiras que se tornavam brinquedos, latas e cordas que davam som e forma às minhas invenções. Nada era dado, tudo era criado. A infância, assim, me ensinou que o conhecimento nasce da experiência corporal, do toque que experimenta, do gesto que transforma o ambiente em extensão do ser. Brincar era meu laboratório de mundo. Cada banho de chuva era uma aula de percepção; cada escorregão no barro, um ensaio sobre equilíbrio; cada risada, uma descoberta sobre convivência e pertencimento. Aprendi cedo que a infância não é apenas uma fase da vida, é um território sensório-afetivo onde se formam os fundamentos da criatividade, da autonomia e da expressão.
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Aventais que viram sapatilhas
Em casa, os aventais da minha mãe se tornavam sapatilhas de ballet. Envoltos nos pés, com as fitas contornando as pernas, deslizavam comigo pela sala, transformando o chão comum em palco. Cantava minhas próprias melodias, criava danças que não precisavam de plateia. Ali, nas coreografias inventadas, nascia o gesto poético da corporeidade, o modo como o corpo pensa, sente e comunica antes mesmo da palavra. Eu estava inventando meus modos de sentir a vida. Aquele brincar era, sem saber, uma forma de pesquisa sobre mim mesma: uma investigação sensível sobre os limites e as potências do corpo. O imaginário motor, que a psicomotricidade mais tarde nomearia, já estava ali, no gesto que expressa emoção, no ritmo que traduz pensamento. A dança, desde então, não era só arte, era linguagem, era minha forma de ser e estar no mundo.
O corpo que aprende: entre o real e o simbólico
O tempo passou, e o corpo que brincava se fez método. Fui ginasta, bailarina clássica, atleta de natação, educadora física e atriz. Em cada caminho, reconheci que o movimento é o princípio do aprender, pois é no gesto que o pensamento se organiza, no ritmo que a mente encontra foco, e na ação que o conhecimento se ramifica. Hoje, pela psicopedagogia e pela psicomotricidade, compreendo que a educação é um processo de reconexão com o corpo vivido, com a emoção que sustenta a atenção e com o prazer que funda a aprendizagem significativa. Ensinar é convidar o outro a se mover, dentro e fora de si. É devolver ao corpo sua função de ponte entre o sentir e o pensar estabelecendo elos entre o aprender e o ressignificar do aprendizado.
Dançografia: quando o corpo escreve o que a palavra não alcança
Minha trajetória culminou na pesquisa de doutorado que entrelaça arte, ciência e vida. A dançografia, metodologia que desenvolvi, nasce desse princípio: o corpo também escreve, não apenas em papéis, mas em presença nos espaços que habitamos. Cada gesto é uma grafia de sentidos, um texto em movimento que expressa o que a linguagem escrita silencia. Nessa docência artista, o aprender se faz dança, e a pesquisa se torna vivência. É um convite a compreender o conhecimento como experiência sensível, em que o corpo é ao sujeito e texto, autor e obra. Porque viver, afinal, é um devir poético em movimento, um sopro que nos atravessa e nos faz criar mundos possíveis. E eu sigo, como aquela menina de pés descalços no pátio, a acreditar que o brincar é o primeiro gesto de sabedoria, e o corpo, a mais bela forma de escrever a vida. O brincar nos permite levar a sério a vida, compreendendo a leveza de cada etapa a ser vivida. E a sua criança, está orgulhosa do adulto que ela se tornou? Sempre é tempo de brincar e realizar o que você um dia sonhou ser.